Da Pausa e do Entorno

Rute Rosas, Setembro 2014

 

Inicio este texto com algumas palavras que enquadram e contextualizam a participação da Escultura, como ramo de especialização artística no pensamento e ação dos corpos no espaço concreto ou, se preferirmos, no espaço tridimensional. O conceito de corpo na Escultura remete-nos quer para uma consciência do nosso corpo como dos corpos e/ou ambientes criados pelos Escultores. Isto quer dizer que existem, em termos gerais, pelo menos dois tipos de relação da fisicalidade possíveis de estabelecer por nós, enquanto público/ espectador/fruidor, com o/s corpo/s escultóricos. Num sentido figurado remeto-me para a distinção entre relação dérmica, de pele, de superfície impenetrável, e relação visceral, de entranhamento.

Independentemente das possibilidades e definições do nosso ver ou sentir, da escala, da matéria, dos meios, das técnicas ou ferramentas, será distinta a relação que estabeleço com um ou mais objetos instalados num determinado espaço daquela que me implica ou me apela a entrar num espaço que será simultaneamente corpo – diferenciação entre Objeto e Instalação.

Instalar será então condição de todos os objetos artísticos, de todas as obras de arte mas a consciência de que o espaço se torna corpo, penetrável, e que a nossa relação com este implica uma predisposição corpo/mente distinta e onde não seremos capazes de isolar as partes do todo, serão características da Instalação. Na Instalação acontece, muitas vezes, uma impossibilidade de definição da forma exterior.

Deste modo e sucintamente, são pressupostos da formação em Artes Plásticas - Escultura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto - FBAUP, e paralelamente a um vasto elenco de disciplinas com níveis de formação dos estudantes na utilização e manipulação das matérias, das formas, da organização e composição, através da experiência, manuseamento e conhecimento de especialidades tecnológicas, um entendimento da estrutura do pensar, sentir e agir no Espaço ou com o Espaço o que implica, necessariamente, o entendimento e confronto com as múltiplas definições de Tempo, Duração, Escala ou Dimensão, além do encontro e desenvolvimento de uma estrutura conceptual para a concretização ou materialização plásticas.

Neste aliciante projeto com a Interecycling – Sociedade de Reciclagem, S.A, e no que diz respeito ao envolvimento da Escultura como Área de Conhecimento ou especialidade, participam estudantes do 2º ao 4º ano da Licenciatura - 1º ciclo de estudos - sem qualquer agrilhoamento a uma disciplina ou unidade curricular. Orientados e coordenados por mim, Rute Rosas, ou pelo meu colega Norberto Jorge[1], o processo do trabalho de campo com os estudantes iniciou-se num dia chuvoso de Primavera com uma visita orientada pela equipa da Interecycling às suas instalações para que os estudantes estabelecessem um contacto direto com as matérias (de diversas origens), com o ambiente – o espaço e o seu entorno –, os trabalhadores, o contexto e os objetivos desta indústria. A consciência da quantidade e qualidades, numa dimensão que nos pareceu avassaladora mas que apenas retratava aquele período temporal e, portanto, uma diminuta fração da realidade – o conceito de Escala e a sua dependência com o Tempo e o Espaço - ou daquilo que consideramos lixo ou resíduo, promoveu as mais diversas manifestações num espetáculo de emoções. Do encantamento à dor parecia impossível definir a multiplicidade de sensações e emoções que um lugar com estas características pode causar.

Considero que este primeiro contacto foi uma experiência que marcou todos os estudantes tão diversamente como são diversas a suas concretizações plásticas e que estão presentes na exposição PAUSA.

Se para muitos revelou-se como um aliciamento, mesmo numa ambígua dualidade entre atração e repulsa, para outros afirmou-se um desencanto sem possibilidade de resposta – o entusiasmo aparente desvaneceu pelos mais diversos motivos resultando numa inoperância relativamente à resposta e por consequência numa desistência compreensível na adesão a esta proposta ou projeto de trabalho.

A sensação de estar num enorme centro comercial ou numa grande superfície provoca inoperância e claustrofobia, em muitos de nós. O apetite e/ou necessidade de consumo converte-se numa espécie de pecado da gula o que poderá derivar numa congestão ou mesmo indigestão.

Nos trabalhos dos estudantes que participaram deste valioso projeto e que se apresentam na PAUSA encontramos inúmeras relações com as realidades e estruturas quotidianas numa sociedade caracterizada pelo excesso mas, consequentemente, mais consciente do mesmo – não será por acaso que as palavras reutilizar ou reciclar são cada vez mais impulsionadoras no desenvolvimento de indústrias e de grandes ou pequenos nichos de comércio.

Nas Artes Plásticas esta questão não é novidade mas na formação em artes é sentida como necessária, particularmente quando esta promove o acesso a meios e matérias que não implicam custos elevados e que, simultaneamente são aliciantes para a imaginação e a criatividade. “Todo o lixo que existe na Terra poderá ser reutilizado. Basta querer dar-lhe uma nova identidade”[2].

Se na entrada do Edifício AXA deparamos com a contradição entre o silencioso cartaz que anuncia a PAUSA e o objeto Reforma[3] visualmente ruidoso, quando chegamos ao 2º piso, somos convidados para uma PAUSA efetiva. No silêncio do Velo da Elena Vidal Deive, cujas “mãos pesadas tecem o véu; desenho envolvente de repetição catársica (…) contenção da respiração, abrigo ou evasão”, o aqui é sinónimo de dentro, “é pés, é incerteza”[4]. É a partir deste momento que tomamos a decisão do percurso a realizar pelas diversas salas convivendo com as questões lançadas ou com as possíveis respostas dos estudantes quando “confrontados com a ideia de abandono” do “capitalismo liberal”[5] ou do lixo e exclusão caracterizantes da nossa sociedade em crise económica e de valores.

Como é característico destes eventos coletivos, a amplitude de possibilidades discursivas revela-se nas PAUSAs que vamos fazendo. Seja pelo encontro com algo que “parece ampliar o insólito”[6] em Um pedaço de casa de João Sarmento, na experiência visual que apela a nossa ação táctil para se tornar sonora através de nós como “parte imprescindível” nos trabalhos da Marta Hipólito, ou na viagem visceral ao Wunderkammer[7]do José Andrade - um ambiente multissensorial que nos atrai e simultaneamente constrange pelo excesso. São inúmeras “reconstituições” que evidenciam a “ação destrutiva” através de “congelamentos de processos de rutura”, “transições, fantasmas”[8] de um estado passado, anterior, para um estado presente no tempo e presente no espaço.

 

Apelos ou gritos?

… PAUSA…

 

[1] Definimos critérios e metodologias de trabalho conjuntas, dialogamos acerca de experiências tidas anteriormente, partilhando funções e enquadrando-as, o mais possível, nas nossas motivações, especialidades ou poéticas individuais.

[2] Se os nossos estudantes são orientados para a realização de reflexões críticas, relatórios, fichas técnicas e sinopses no final de cada exercício, fará sentido que, neste texto, o leitor seja remetido para alguns exemplos e/ou palavras que escreveram. Frase retirada da Sinopse Interecycling para a exposição PAUSA de Ana Sousa Santos – 2º ano curricular – Licenciatura em Artes Plásticas – Escultura, ano letivo 2013/14. Como abreviatura utilizarei o seguinte modelo: nome do estudante, SInPAUSA, ano curricular LAP-E13/14.

[3] Uma estrutura cónica realizada pelo empilhamento de carcaças de televisores domésticos que apenas emitem luz com diferentes intensidades. Do estudante Luís Santos, 2º ano LAP-E13/14.

[4] Elena Vidal Deive, SInPAUSA, 3LAP-E13/14. Perceber ou localizar a matéria utilizada na realização desta escultura não é tarefa fácil. São grelhas metálicas ou máscaras provenientes de televisores.

[5] Paulo Graça, SInPAUSA, 4LAP-E13/14.

[6] João Sarmento, SInPAUSA, 2LAP-E13/14. A título de curiosidade, o objeto escultórico deste estudante foi realizado com chapas de aço inox provenientes de frigoríficos domésticos.

[7]Câmaras das maravilhas ou gabinetes de curiosidades. Neste contexto poderá sugerir-se a leitura da obra A Vertigem das Listas de Umberto Eco - uma viagem no tempo e na relação obsessiva e sistemática do ser humano pelo colecionismo, pela catalogação, pelos inventários. Um valioso documento e estudo acerca do conceito de lista ou da ideia de listagem.

[8] José Andrade, SInPAUSA, 3LAP-E13/14.