Entre o corpo e a paisagem

Fernando Cocchiarale, Rio de Janeiro, Abril 2004

In www.anamnese.pt

 

O sentido poético da arte de Rute Rosas transita dissonante entre dois gêneros muito caros à história da pintura ocidental: o corpo (retrato) e a cena a ele destinada (paisagem). No entanto a escolha de Rute por estes temas ancestrais da arte não é movida por qualquer nostalgia ou por esforços de reabilitação. Ao contrário, sua obra parece investigar que conjugações do corpo e da paisagem seriam possíveis na arte e no mundo contemporâneos. 

Daí talvez resulte uma primeira e esclarecedora opção da artista. O uso de meios de expressão e de suportes não  convencionais sublinham o distanciamento crítico de Rosas em relação às representações pictóricas do corpo e de cenas naturais criadas pela arte clássica. Em todos os trabalhos dos últimos anos sua presença direta, no caso das performances, ou icônica, nos vídeos e fotografias que as registram, é vital para a fruição e  para a leitura (tanto sintática quanto semântica) das obras desta artista.

Entretanto sua presença explícita nos trabalhos não se inscreve na tradição do auto-retrato, enraizada na história da pintura do ocidente, pois Rute não costuma trabalhar com os traços distintivos de sua identidade visual, sobretudo com o detalhamento do conjunto de seu rosto.

Frequentemente desnuda ou coberta por uma malha colada ao corpo, Rosas parece, em alguns dos seus trabalhos, um quase desenho (uma auto-silhueta) ou  uma escultura de si mesma. A ênfase aqui é sempre dada à totalidade de seu corpo e não a este ou aquele detalhe específico. Ás vezes cobre-se das pernas ao alto da cabeça, deixando apenas as feições aparentes. Em outras ocasiões, mascara-se, numa evidente minimização do papel de seu rosto nos trabalhos.

Por outro lado a figura da artista nas obras tampouco tem por função fundamentar ações reais, vividas, sem simulações, não teatralizadas e nunca representadas, tal como professavam a body art e a arte conceitual nos anos 70. Contrárias a esse desprezo pela ilusão, herdado do modernismo, mas ainda ativo nos primórdios da arte contemporânea, as obras de nossos dias retomaram a narrativa, o conteúdo e o ilusionismo, embora em bases muito diversas daquelas do passado pré-moderno.

Com o mesmo espírito, se examinarmos a outra ponta que delimita o âmbito da investigação e invenção poéticas de Rute, as paisagens, veremos que razões bastante semelhantes às que separam seus trabalhos da lógica do auto-retrato, da body-art e do conceitualismo, distanciam-na, simultaneamente, da paisagem clássica e pré-moderna e, também, daquela proposta pela land-art. Estes pólos (corpo e paisagem) que emprestam sentido à produção de Rute Rosas equacionam-se de modo emblemático em sua performance Dou  Festas Porque Quero Festas, realizada no Porto em 2002, na casa do galerista José Mário Brandão, na mesma noite da inauguração da mostra Dentro de Mim, desta artista, na GaleriaCanvas.

(…)

A degustação torna-se, ainda que provisoriamente, antropofágica.  Ao final de tudo, entre os farelos que restaram espalhados sobre a mesa, pode-se observar que a imagem projetada permaneceu intacta e que com o bolo foi-se embora não o trabalho, mas espaço em existiu num primeiro momento.

 Entre o corpo real de Rute Rosas e sua inscrição no trabalho, feita pela malha transformadora, entre sua imagem projetada e a fragmentação do fundo (bolo) no qual se inscrevia, entre o registro da festa e das festas, e sua posterior visão em DVD, existem tantas mediações que não mais podemos pensar o sentido dessa obra na simples polarização entre realidade e representação.

 Dou Festas Porque Quero Festas, transmite-nos a idéia de uma troca igualitária, de um fluxo cambiante entre artista e público, mas também entre sua pessoa e as outras (dar e receber afagos é algo de ordem inteiramente pessoal), entre, enfim, corpo e paisagem. Rompe-se aqui com a velha exigência de separação entre sujeito e objeto (funcionalmente diferentes), fundamental para as ciências e as artes do passado. Dou Festas Porque Quero Festas não mais concebe a alteridade como uma polarização entre identidades permanentes, fixas. mas enquanto um processo transitivo de papéis e de funções em rede.