Pele como testemunha de uma história comum a todos

Paulo Reis, Lisboa, Setembro 2006

 

Quero ficar no seu corpo feito tatuagem /que é para te dar coragem / para seguir viagem / quando a noite vem...

Tatuagem, Chico Buarque

 

Ao termos empatia com alguém, ou estar loucamente apaixonado, dizemos que “é coisa de pele”. Este enunciado contém mais significados que a própria existência demarca, pois é apenas com a morte que o corpo se separa do espírito e leva consigo as memórias que ficaram estampadas nele. A pele como sinônimo de corpo - e de alma - vêm produzindo obras de grandes significados para a história recente da arte, para além de tornar-se símbolo e espaço de vida e morte, é também metáfora do auto-conhecimento.  Em ações anteriores ao nascimento da Body Art, Yves Klein e Piero Manzoni usaram a pele como espaço para criação. Klein criou suas Antropometrias, pinturas resultantes de ações onde cobria com tinta azul o corpo de modelos. Manzoni em suas Esculturas viventes escrevia um certificado de autenticidade na pele de qualquer pessoa que quisesse tornar-se arte.

 

No fim dos anos 1960, os artistas consideraram o corpo como lugar e meio de expressão artística verdadeira, levando em consideração a tudo que havia sido feito até aquele presente momento. O espírito do tempo (Zeitgeist) dos anos 60 era a prática do corpo como arte (Body Art). Uma geração inteira de artistas, como Robert Morris, Hélio Oiticica, Alberto Carneiro, Jannis Kounnelis, entre outros, tomou como norma não separar arte e vida, tornando o corpo como suporte físico da arte. Através de performances, happenings, ações, esculturas vivas, objetos, estes artistas propunham ações limítrofes entre animal e humano, entre sensual e estóico, entre heróico e banal. Nos EUA, Dennis Oppenheim deita-se ao sol, tendo ao peito um livro aberto, e deixa-se queimar em segundo grau (Reading position for second degree burn), deixando marcado na pele apenas o espaço protegido pelo livro. Vito Acconti tranca-se num espaço exíguo numa galeria onde se masturba por oito horas seguidas (Seed bed). Bruce Naumann modela partes de seu corpo, modificando a forma destes ao puxar, esticar ou comprimir boca, braço, perna ou pinta sua pele em vários tons (From Hand to MounthPulling mouth e Art Make-up); Chris Burden não se furtava em agredir seu próprio corpo com tiros ou eletrochoques (Shoot Prelude to 220 or 110, 1976), entre outras ações. Ainda Hanna Wilke e Carolee Schneemann também promoveram ações em seus próprios corpos, como nos rituais femininos das sociedades primitivas.

 

Na Europa, Hermann Nitsch, Günter Brus, Otto Muehl e Rudolf Schwarzkogler (Wiener Aktionsgruppe) usaram indiscriminadamente seus próprios corpos, degradado-os, envelhecendo-os, torturando-os até quase a morte; Gina Pane, Valie Export, Peter Weibel, Michel Journiac, Urs Lüthi e Gilbert & George promoviam ações onde o corpo era sempre exposto a provações próximas à tortura. No Brasil, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape buscaram experiências corporais únicas. Hélio nos seus Parangolés mistura o hedonismo dos morros cariocas com o construtivismo de Piet Mondrian; Lygia Pape como os Ovos e Divisor deu um corpo orgânico à arte em oposição ao extremo cerebralismo dos conceituais e Lygia Clark investigava os limites das sensações do corpo, da pele em Nostalgia do corpo, ações feitas com materiais orgânicos como sementes, água, argila, mel, etc...

 

Passados mais de trinta anos, a arte do corpo ainda encontra ecos na arte do presente. Uma geração inteira de artistas ainda propõem criar objetos de arte cuja função é de mobilizar os sentidos do corpo para um auto-conhecimento, como Isaque Pinheiro e Rute Rosas. Estes investigam os limites da sensação, do conhecimento, da forma a priori, criando obras em diferentes suportes como esculturas, objetos, performances, vídeos, fotografias, tendo a pele como testemunha de suas histórias e buscas estéticas. Não por acaso, Pele de Embrulho, uma obra em co-autoria abre a exposição intitulada Água de ColóniaPele de Embrulho é um conjunto de cinco fotografias realizadas em cinco momentos sobre a escultura homônima, feita em couro, pele de carneiro, prata e aço inox. Nesta sequência fotográfica de Pele de Embrulho, os artistas expõem cinco movimentos diferentes da escultura.  (…)

 

Rute Rosas apresenta Mala que voa - Mala do meu corpo…, uma peça onde a artista opera uma mistura de referências, como Boite en valise, de Duchamp com as esculturas-moldes corporais de Louise Bourgeois. Neste “museu portátil”, a artista carrega um umbigo, um lábio em forma de beijo, um dedo, um mamilo. Segundo a artista, esta mala é um tesouro, um “corpo” que transporta fragmentos do seu próprio corpo. São como «compartimentos /fragmentos – outros corpos fragmentados – que dentro se si comportam os pequenos tesouros de mim, dádivas de uma mulher: fragmentos partilháveis. Cada um deles é único pelo modo como é realizado, pelo processo, pelo sentido, pela simbólica que adquirem. São dádivas de mulher: são dedais de costureira, umbigos de mãe, bocas que beijam e alimentam, mamilos que alimentam e se deixam beijar, chupar e lamber pelo recíproco prazer, dedinhos que apertam a camisa do seu amor…»[1].

 

A segunda peça é um vídeo, Talvez eu seja daqui…, filmado no Rio de Janeiro, onde a artista passa por um batismo estético. Este vídeo, bem como o banho, expressa o seu sentido de identidade e comunhão que esta mantém com o Brasil. “ «O Brasil mítico, antropofágico, evocado como património cultural comum e paradoxal”[2]). Nesta obra, Rute Rosas mostra o corpo nu numa praia deserta do Rio de Janeiro. Este corpo ainda primitivo, não cristianizado, recebe um batismo – este sim, simbólico - juntando ao conteúdo estético. «“Talvez eu seja daqui… ” pode ser entendido como uma evocação da vanguarda neo-concreta brasileira, indicativa da importância que a referência antropofágica tem no trabalho artístico de Rute Rosas, designadamente pelas obras de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, com as quais partilha o intuito multissensorial e participatório”,»[3] Como complemento a “Talvez eu seja daqui... ”, a artista apresenta a peça Baptismo/viagem/nostalgia, uma peça sonora-olfativa, composta por um chuveiro, rodeado de cortinas onde apresenta imagens de yoga.  

 

Já Pele de embrulho, papel de embrulho, é um múltiplo assinado, em formato de papel de parede ou de embrulho, dependendo de cada usuário, onde a artista lembra do ato de presentear alguém. «Para a artista, presentear é abraçar simbolicamente a pessoa. O próprio ato de embrulhar/agasalhar o presente é um abraço. O trânsito constante entre a dimensão afectiva (o abraço) e funcional (o papel para embrulhar) situa a intervenção da artista, como se disse, num plano que tenta curto-circuitar o modo como convencionalmente separamos as esferas do amor e do trabalho, do prazer e da produtividade... A artista parece indicar o espaço da afectividade como espaço vital de nivelamento das contradições que marcam o ritmo das nossas acções. Assim, é a partir dos pequenos gestos e nos pequenos prazeres, que se vão erigindo alternativas positivas àquilo que nos parece inevitável e fatalmente determinado. E é acolhendo e confrontando-nos com todo o tipo de situações (...), que melhor nos preparamos para saber valorizar a simplicidade e a energia dos momentos de felicidade de que tão irracionalmente nos afastamos quotidianamente”.»[4]Pele de embrulho na TV shop, uma vídeo-performance, funciona como um modelo de apresentação e divulgação da Pele de embrulho, pois ensina-nos como se embrulham e desembrulham presentes.

 

O interesse pelo uso de práticas do corpo, quer sejam em esculturas, vídeo, fotografias ou perfomances, torna o trabalho de Isaque Pinheiro e Rute Rosas uma reflexão sobre as práticas atuais da arte, onde o essencial é a comunhão entre arte e vida, tendo a pele como testemunha de uma história comum a todos.  

 

Paulo Reis

Lisboa, Setembro de 2006

 

[1] Das sinopses do texto de apresentação Água de Colónia fornecida pelos artistas.

[2] Suzana Vaz, in Íman – Talvez eu seja daqui. Rute Rosas, Casa das Artes, Famalicão, Abril/Maio 2005.

[3] Idem.

[4] Miguel von Hafe Pérez, in Da afectividade enquanto processo, Setembro de 2005.