RUTE ROSAS > EXPOSIÇÃO RESPIRA

 

> ENRIC TORMO. MONTESA. ESPANHA. AGOSTO 2008

Com a entrada do terceiro trimestre de 2008 é possível começar a fazer um balanço do que aconteceu e caracterizou estes últimos 12 meses. De tudo o sucedido e para nossa argumentação, interessa-nos destacar dois factos: as Olimpíadas celebradas na exótica China e a crise económica em que estamos imersos.

 

Segundo parece, ambos os factos estão unidos. Os chineses decidiram unilateral e definitivamente abandonar a dieta do arroz e comer no mínimo duas vezes por dia. Assim, o melhor sistema para o conseguir foi entrar directamente neste mundo global. Aquele que é único, uniforme, ordenado, tecnicamente desenvolvido e sobretudo seguro. Porém com toda a segurança, também aborrecido, anódino, uniforme, asfixiante e evidente. Para alcançar este fim recorreram a uma fórmula que já conheciam, por tê-la utilizado anteriormente; recorreram ao desporto. A única actividade humana que teoricamente é apolítica, não lucrativa, igualitária…democrática, basicamente porque não há vencedores nem vencidos, apenas participantes.

 

Há anos, nos tempos da guerra fria, para romper um pouco o gelo existente nas relações entre os Estado Unidos capitalistas e a China comunista, organizou-se uma espécie de encontros de “ping-pong” aquilo a que os puristas chamam de “ténis de mesa”. A alegoria e/ou metáfora não tem deixado de me surpreender desde então. Uma pequena bola que vai e vem sobre uma mesa verde de pequenas dimensões. Naquela época era só uma questão de limar asperezas, mas na actualidade a operação foi em grande escala e portanto o evento também tinha que ser bastante mais sofisticado. Levaram Pekin a Zeus Tonante e a todos os seus companheiros do Olimpo. Seguramente, tentando emular Esiodo, pretenderam criar um panteão com novos deuses.

 

A essa realidade queremos contrapor um terceiro facto, muito menos comentado e anunciado, porém não menos transcendente. A nossa Rute Rosas expõe numa pequena povoação do norte de Portugal, mais concretamente em Vila Nova de Cerveira. É uma povoação antiga, de tradição celta, situada sobre o rio Minho. A sua situação converte-a num enclave de ligação entre um norte e um sul separados pela política, mas unidos pela consciência, onde se estabelece um constante fluir de água, gentes, ideias, desejos e ilusões. Definitivamente é uma porta que se abre para insuflar novos ares. É como um núcleo de resistência, alternativo a essas últimas correntes que postulam o pensamento único.

 

Isso faz-nos recordar aquela outra pequena povoação do norte da Gália que, graças a uma poção mágica resistiu e resistirá para sempre a …Cabe recordar que, segundo rezam as crónicas, também ganharam as Olimpíadas em que participaram.

 

Pois bem, Rute está ali. Porém… não é o Asterix; tampouco Obelix. Quiçá tenha algo de Panoramix, o druida? Não, não é nenhum deles, mas em seu afazer diário tem algo, o melhor, de cada um. De Asterix podemos encontrar a agilidade e a inteligência, a estratégia e a sagacidade. De Obelix, a sua simplicidade baseada no óbvio e o seu carinho por Idefix, neste caso por Fuji. De Panoramix, tem essa sintonia com o envolvimento, essa referência ao natural, à capacidade de criação, melhor, de geração mediante uma constante transformação. Quiçá a condição feminina ajude nesta realidade. A capacidade e a serenidade da gestação oferecem a Rute uma misteriosa possibilidade de introspecção plena. Diríamos que Eleusis continua existindo.

 

Isso é o que podemos ver, melhor, sentir, nesta mostra. Nela se apresenta o longo percurso da obra que, em etapas distintas, tem sido o motivo vital da nossa autora. Perante tal situação e á força de sermos ortodoxos deveríamos encontrar algum objectivo que definisse e demarcasse a qualidade da proposta exibida. Como se compõe de uma série que se refere a etapas criativas anteriores, estaríamos, pois, frente àquilo que conhecemos como “uma antologia, uma retrospectiva, uma biografia”, … mas não.

 

Não podemos concebe-la como uma antologia, pois nela não encontramos os trechos nem as notas anteriores, nem sequer se mostra uma linha evolutiva; tampouco é um compêndio inerte, inanimado de referência. Menos ainda é uma exposição retrospectiva, não estamos em cima de um outeiro, necessário e privilegiado, de onde possamos vislumbrar um trajecto com as suas sinuosidades e seus desníveis. Em caso algum é uma mostra biográfica, faltam muitos elementos, referências e nuances para sintetizar uma vida. Então, estamos frente a quê?

 

Estamos frente a uma essência, a um fluxo, à sua “posição mágica”. Uma receita de onde vão aparecendo os diferentes componentes da mistura.

 

Uma poção mágica, que toma como referência central e nuclear o próprio corpo. A referência constante ao próprio existir e sentir. Digamos, uma somatização do viver. Esse corpo é também a referência dos recursos, dos desejos, das ilusões, daquilo que poderia ter sido e que nunca será. Porque, definitivamente, são os sentidos que ainda estabelecem a relação com o exterior. É interactivo, é o meio a partir do qual se estabelece a expansão, tomando como centro um simples umbigo. Um umbigo que foi materializado, como outras partes anatómicas. Um corpo que foi abraçado, cosido, mutilado, exposto, lavado …

 

Estamos perante uma mostra selectiva dos seus trabalhos, das suas técnicas, mas singularmente do seu sentir. Há um conceito de transformação, de uma evolução, de uma superação de sentidos e estados, não na sua extensão mas sim na sua essência. Claramente quer ser uma síntese; isto é, uma selecção e ordenação de conteúdos que, sem dúvida, manifesta o encerrar de uma etapa, quiçá de juventude, para poder enfrentar um novo processo de expansão.

 

Até agora Rute tinha estabelecido uma relação estreita entre vivência, acção, reacção e obra, o nosso Obelix em pleno desenvolvimento. Porém, desde há pouco, produziu-se uma alteração. Houve uma tomada de consciência da existência de algo que está acima da própria obra. Daquilo que nos induz e nos leva  até  um  lugar, uma meta.

 

Um destino? No sentido clássico (olímpico) da palavra. O nosso existir e o da própria autora transcende mais além, desenhando-se um futuro cheio de plenitude que se deve prever, Asterix, mas sempre ajudado e complementado pela “natura naturans”, Panomarix.

 

Manifesta-nos a consolidação de determinados parâmetros pessoais e emocionais. Já que, definitivamente, qualquer processo de selecção de vivências está condicionado a uma complexa rede de princípios éticos e morais. À criação de um contexto avaliador e controlador de tudo aquilo que lhe foi e é próprio. Estabelece-se assim um ponto de referência que impõe um processo de autocensura, de limitação expressiva. Isso, por paradoxo que pareça, é um claro sintoma de liberdade e de capacidade criativa. O autocontrolo significa o uso de uma depurada ferramenta cirúrgica que permite a melhoria de conteúdos, de formas e de modos.

 

Que estamos frente a esse rompimento, evidencia-se com a mudança de categoria do tema. Agora estamos frente à respiração, o contrário da asfixia. Creio que a evidência é tal que não é necessário ponderar as implicações. Não podemos esquecer que a respiração é o primeiro acto de vida autónoma de todo aquele que nasce. É um acto doloroso que inicia a penitência da vida, desse longo percurso que terminará quando se expira, se exala o ultimo sopro de ar. A vida, em definitivo, reduz-se somente a inalar e exalar ar.

 

Porém, também o ritmo da vida se conjuga com a cadência da respiração, com esse intercâmbio entre o interior e o exterior. Há um tempo para o sossego, palavra que só pode pronunciar-se pausadamente e medindo perfeitamente a expulsão do ar, mas há também momentos para o frenesi, onde a violência de expulsão do ar marca por si só a tensão. Isto implica um dinamismo e um movimento de vaivém e, logicamente, um aquecimento e arrefecimento constante das vias por onde passa.

 

É, decididamente, o aspecto que faltava na trajectória de Rute. Até agora as suas propostas só tinham sido exposições estáveis e estáticas, dentro de um espaço que se deveria percorrer. Todas as suas formulações eram materiais, tangíveis, objectivas, reais, … agora é só movimento e como tal, só sugerido, só indicado e assinalado. Eolo é o único Deus que se manifesta pelo seu movimento. Eolo não se vê, não se toca, sente-se. É inapreensível e é o único que, com o seu sopro divino, pode levar o homem desde o máximo do bem-estar até à loucura ou suicídio.

 

Perante isto, dir-se-ia que a autora quer tomar ar, alento, buscar esse instante de repouso. Encher de novo os pulmões e reiniciar a carreira que a conduza a esse destino que ela mesma se prometeu e, como Filipides, possa chegar aos pés de Atenea, deusa da sabedoria, de estratégia e da guerra, para proclamar aos quatro ventos “Nike” (vitória). Lutámos e vencemos as tropas gregárias dos grandes impérios.

 

 

> ENRIC TORMO. MONTESA. ESPAÑA. AGOSTO 2008

Entrats en el tercer trimestre de l’any 2008 és possible començar a fer un balanç del que ha succeït i caracteritzats aquests últims dotze mesos. De tot el que ha succeït i per a la nostra argumentació ens interessa destacar dos fets: les olimpíades celebrades en l’exòtica xinesa i la crisi econòmica en la que estem immersos.

Pel que sembla els dos fets van units. Els xinesos han decidit unilateralment abandonar definitivament la dieta d’arròs i menjar com a mínim dues vegades al dia. Així les coses, el millor sistema per a lograrlo, ha estat entrar directament dins d’aquest món global. Aquell que és únic, uniforme, ordenat, tecnològicament desenvolupat, i sobretot segur. Però amb tota seguretat també avorrit, anodí, uniforme, asfixiant i evident. Per aconseguir aquesta fita han recorregut a una formula que ja els era coneguda per haver-la utilitzat amb anterioritat; han fet servir el reclam de l’esport. L’única activitat humana que sobre el paper és apolitica, aeconómica, igualitària... democràtica. Bàsicament perquè no hi ha ni vencedors ni vençuts, sol participants.

 

Fa anys, en temps de la guerra freda, per trencar un poc el gel existeixen en les relacions entre els capitalistes Estats Units i la comunista Xina, es va organitzar una espècie de trobades de “ping pong”, allò que els puristes denominen com “tennis de taula”. L’al·legoria i/o metàfora no ha deixat de sorprendre’m des d’aleshores. Una piloteta que va i ve sobre una taula de petites dimensions de color verd. En aquell temps sol era qüestió de llimar asprors, però en l’actualitat l’operació ha estat a gran escala i per tant l’esdeveniment també tènia que ser bastant mes sofisticat. S’han portat a Pequín a Zeus Tonant i tots els seus companys de l’Olimp. Segurament intentant emular a Esiodo, han pretès crear un panteó de nous déus.

 

A aquesta realitat volem descarar i contraposar un tercer fet, molt menys comentat i anunciat, però no per això menys transcendent. La nostra Rute Roses exposa en un petit poblet del nord de Portugal, concretament a Vilanova de Cerveira. Aquesta és una població antiga, de tradició celta, ubicada sobre el riu Miño. La seva situació la converteix en un enclavament de transit entre un nord i un sud separats per la política però units per la consciència, i on s’estableix un constant fluir, ja sigui l’aigua, ja sigui la gent, ja siguin les idees, els anhels, i les il·lusions. En definitiva és una porta que s’obre per insuflar nous aires. És com un nucli de resistència, alternatiu a aquestes ultimes corrent que postulen el pensament únic.

 

Això ens recorda aquell altre poblet del nord de la Gàl·lia que gràcies a una poció màgica han resistit i resistirà per sempre a ..... Cal recordar que, segons resen les cròniques, també van guanyar les Olimpíades en les quals van participar.

 

Doncs bé Rute està allà. Però ... no és Asterix; tampoc Obelix, a la vista està. potser té alguna cosa d’en Panoramix, el druida? No, no és cap d’ells, però en el seu quefer diari té alguna cosa, el millor, de cadascun. D’ Asterix podem trobar l’agilitat i la intel·ligència, l’estratègia i la sagacitat. D’ Obelix, la seva simplicitat basada en l’obvietat i el seu afecte per Idefix, en aquest cas per Fuji. De Panoramix, té aquesta sintonia amb l’entorn, aquesta referència al natural, a la capacitat de creació, millor, de generació mitjançant un constant esdevenir. Potser la condició femenina ajudi en aquesta realitat. La capacitat i la serenitat de la gestació ofereix a Rute una misteriosa possibilitat d’introspecció prenyada. Diríem que Eleusis contínua existint.

 

Això és el que podem veure, millor sentir, en aquesta mostra. En ella es presenta el llarg recorregut de l’obra que, amb diferents etapes, ha estat el motiu vital de la nostra autora. Enfront de tal situació i a força de ser ortodoxos hauríem de trobar algun adjectiu que definís i delimités la qualitat de la proposta exhibida. Com es compon d’una sèrie de referència a etapes creatives anteriors, estaríem, doncs, enfront d’allò que coneixem com “una antològica, una retrospectiva, una biogràfica”, ... però no.

 

No podem concebre-la com una antològica, doncs en ella no trobem els retalls ni les notes anteriors, ni tan sols es mostra una línia evolutiva. Tampoc és un compendi inert, inanimat de referència. Menys fins i tot és una mostra retrospectiva, no estem sobre aquest punt de guaita necessari i privilegiat des d’on puguem entreveus un trajecte amb les seves sinuositats i els seus desnivells. En cap cas és una mostra biogràfica, falten molts elements, referents i matisos com per sintetitzar una vida. Llavors front que estem?

 

Estem enfront d’una essència, a un destil·lat, al seu “posició màgica”. Una recepta on van apareixent els diferents components de la barreja.

 

Una poció màgica, que pren com a referència central i nuclear el propi cos. El referent constant al propi existir i sentir. Diguem una somatització del viure. Aquest cos també és la referència dels recursos, dels anhels, de les illusions, d’allò que podria haver estat i que mai serà. Perquè en definitiva són els sentits els que encara estableixen la relació amb l’exterior. És interactiu, és el mitjà des del que s’estableix l’expansió prenent com centre un simple melic. Un melic que ha estat materialitzat, com altres parts anatòmiques. Un cos que ha estat abraçat, cosit, mutilat, exposat, rentat....

 

Ens trobem enfront d’una mostra selectiva dels seus treballs, les seves tècniques però singularment del seu sentir. Hi ha l’apreciació d’un esdevenir, d’una evolució, d’una superació de sentits i d’estadis, no en la seva extensió sinó en la seva essència. Clarament vol ser una síntesi; això és, una selecció i ordenació de continguts, que sense cap mena de dubte manifesta el tancament d’una etapa, potser de joventut, per poder enfrontar-se a un nou procés d’expansió.

 

Fins ara Rute havia establert una relació tancada entre vivència, acció, reacció i obra, el nostre Obelix en ple desenvolupament. Però des de fa un curt temps s’ha produït una alteració. Hi ha hagut la presa de consciència de l’existència d’alguna cosa que està per damunt de la pròpia obra. D’allò que ens indueix i ens porta cap a un lloc, cap a una meta. Un destí? En el sentit clàssic (olímpic) de la paraula. El nostre existir i el de la pròpia autora transcendeix, mes enllà, dibuixant un després farcit de plenitud que cal preveure, Asterix; però sempre ajudat i complementat per la “natura naturans”, Panoramix.

Se’ns manifesta la consolidació de determinats paràmetres personals i emocionals. Ja que, en definitiva, qualsevol procés de selecció de vivències, ve supeditat a una complexa xarxa de principis ètics i morals. A la creació d’un context avaluador i controlador de tot allò que li ha estat i li és propi. S’estableix així un marc de referència que imposa un procés d’autocensura, de limitació expressiva. Això, per paradoxal que sembli, és un clar símptoma de llibertat i de capacitat creativa. L’autocontrol significa l’ús d’una depurada eina quirúrgica que permet la millora de continguts, de formes i de maneres.

 

Que estem enfront d’aquest trencament, s’evidència amb el canvi de categoria del tema. Ara estem enfront de la respiració, el contrari de l’asfíxia. Crec que l’evidència és tal que no fa falta ponderar les implicacions. No hem d’oblidar que respirar és el primer acte de vida autònoma de tot nascut. És un acte dolorós, que inicia la penitència de la vida, d’aquest llarg recorregut que acaba quan s’expira, s’exhala l’últim buf d’aire. La vida en definitiva sol es redueix a inhalar i exhalar aire.

 

Però també el ritme de la vida es compassa amb la cadència de la respiració, amb aquest intercanvi entre l’interior i l’exterior. Hi ha un temps per a l’assossec, paraula que sol es pot pronunciar pausadament i mesurant perfectament l’expulsió d’aire, però també hi ha moments per al frenesí, on la violència d’expulsió de l’aire marca per si sol la tensió. S’implica un dinamisme i moviment de vaivé i com és lògic un escalfament i refredament constant de les vies per on passa.

 

En definitiva és l’aspecte que faltava en la trajectòria de la Rute. Fins ara les seves propostes sol havien estat exposicions estables i estàtiques, dins un espai que calia recórrer. Totes les seves formulacions eren matèriques, tangibles, objectuals, reals,... ara sol és moviment i com a tal solament suggerit, indicat i assenyalat. Eolo és l’únic déu que es manifesta pel seu moviment. Eolo no es veu, no es toca, es nota. És inaprensible i l’únic que amb el seu al·lè diví pot portar als homes des del màxim benestar a la bogeria i al suïcidi.

 

Estant així les coses es diria que l’autora vol prendre aire, al.lè. Buscar aquest instant de repòs. Omplir de nou els pulmons i reiniciar la carrera, que la condueixi cap a aquest destí que ella mateixa s’ha assegurat i com Filipides pugui arribar als peus de la deessa Atenea, aquella de la saviesa, de l’estratègia i de la guerra, per proclamar als quatre vents “ Nike” (victòria). Hem lluitat i hem vençut a les tropes gregàries dels grans imperis.

 

 

RESPIRA

> SUZANA VAZ. TOKYO. AGOSTO 2008

Por um momento, em todo o espaço de exposição, revelada quando as cortinas caem, uma única palavra: respira. 

A apresentação Respira tem a força vital preponderante e invisível de um fôlego profundo. Rute Rosas realinha a sua respiração, observa-se, e convida o visitante a fazer isso mesmo, a juntar-se à sua reflexão.

Daquilo que poderia ser uma exposição convencional resta o vídeo do dia da abertura, que mostra o registo desse evento minimal, e a distribuição de um objecto, o catálogo, assinado e numerado. Este reúne o essencial da obra de Rute Rosas e materializa o movimento retrospectivo presente, incluindo também obras recentes individuais, co-autorias e parcerias, realizadas maioritariamente com jovens artistas.

O cancelamento iconográfico de Respira compreende-se no seguimento da instalação Não Há Príncipe Azul no Elefante Cor-de-Rosa (Abril 2008, Espaço Ilimitado, Porto), da qual a artista excluiu alguns dos elementos característicos do seu discurso artístico: representações do seu corpo, a proposta de vivências sensoriais directas ou de uma predisposição convivial (expressa, por exemplo, na oferta de artigos comestíveis). Estes elementos facilitam a experiência vivencial directa, a emergência do inconsciente incorporado e da volição criativa, reduzindo assim a importância de uma leitura de significados; por outro lado, manifestam o impulso egóico numa essencialidade física, prefigurado na objectividade do comportamento pelo protocolo de fruição.  

Em Não Há Príncipe Azul…, o espaço da casa - repleto de artigos do quotidiano e evocativos de memórias da existência, exibidos quase museograficamente - não contém nenhum dispositivo que conduza ao comportamento de acesso à materialidade do corpo, nem nenhuma representação da vitalidade pura, experiencial, do corpo. A vida e a experiência estão esquematizadas na área delimitada e contingente do discurso codificado, aparecem mediadas pela linguagem, pela inerência do significado, seja no conteúdo verbal das mensagens bordadas, seja no conteúdo poético dos artigos emoldurados ou dos objectos, simbolicamente sobrecarregados. Embora imerso num ambiente preparado, o visitante apreende o sentido do trabalho pela elaboração de significados, por uma aproximação tendencialmente conceptual, discursiva ou mesmo literária.

Nesta progressão em que a afirmação do ego se desloca do dinamismo do inconsciente para a deliberação do consciente, Respira pode ser entendida como uma anuência sem reservas ao exercício de consciência, pelo qual se reconfigura o ego no seu papel de centro negociador do processo consciente, de agente mediador entre o inconsciente pessoal, a realidade, e a persona. A persona que emerge da apresentação Respira é introspectiva e discreta. Encontra-se envolta pelo código verbal, resguardada pela consciência linguística. É mediata, inclinada ao exame dos impulsos. Situa-se no silêncio reflexivo da leitura, onde sobra apenas o murmúrio da respiração, traço residual da fisiologia.

 

Em simultâneo com Respira, Rute Rosas revisita, em Cerveira, a residência Faço de conta que és tu (Berlim, 2004, Galerie 35) mantendo o seu ícone central, um objecto de madeira que estiliza, em escala natural, o vulto de um corpo com as pernas dobradas, para ficar deitado na posição de ‘cadeirinha’. A leitura comparativa dos dois projectos, dentro da ideia de transmutação simbólica que está no cerne do processo de individuação, reforça a interpretação de uma persona que opta por observar em vez de agir, dissociada do devaneio que o ícone outrora suscitou.

No projecto de residência original, a artista dormia ao lado do vulto, na mesma cama em que este repousava, usando-o quase como um objecto de substituição. O simulacro de interacção sublinhava uma expectativa não correspondida, um anseio, a atmosfera dramaticamente sobrecarregada do apego.

Em Cerveira, o vulto permaneceu duas noites numa carrinha, dentro de um saco preto, do qual foi tirado para ficar num beliche no albergue de artistas, no quarto em baixo daquele em que a artista dormia. À economia dos gestos que resulta da ausência de iniciativas de interacção corresponde um abrandamento da energia da psique nos seus planos mais densos, físico e emocional, e estes dois factores comprovam o apagamento do símbolo, que caducou como estrutura dinâmica no processo de individuação.

Entretanto, alguns procedimentos de finalização compõem uma nova imagem: o vulto ficará deitado num dos lados de uma cama cortada ao meio – literalmente, revelando todas as camadas de fibra, do colchão à coberta – objecto escultórico que transporta, em significados também directamente apreensíveis, o que resta do ciclo biográfico. Esta peça fará parte do espólio do Museu da Bienal de Cerveira, no qual a artista já está representada com o seu trabalho de instalação Da Terra ao Céu, que foi Prémio Bienal de Cerveira em 2005.

 

 

 

> IN VOCA01 – REVISTA DE ARTE NO PORTO, PP.48-51. JULHO 2008

“Em conversa”

Voca. O seu trabalho é auto-biográfico ou ficcional? Ou, ainda noutra perspectiva, talvez procure apenas o registo de um imaginário interior mas não necessariamente pessoal...

 

Rute Rosas. O que faço é auto-referencial, auto-biográfico, mas é igualmente ficcional.

Crio outras realidades.

Não se trata de um álbum ou de um diário. Não pretende ter uma narrativa. Não se concentra apenas em mim. Parte de mim.

Se fosse um diário não o expunha.

Mas também é verdade que é a minha vida.

Acontece que a minha vida tem muito de semelhante à vida de qualquer outra pessoa, e como costumo dizer: mais importante do que nos afasta é aquilo que nos aproxima.

Desta forma, além do exercício da auto-consciência, da auto-crítica, preciso de estar envolvida com o que me rodeia, com o Outro.

Sem esse Outro, nada faz sentido. Eu não existo.

(…)

V. Percebemos então que se trata de um processo reflexivo. Partindo dessa interacção com o Outro e sendo que o seu trabalho se desenvolve num âmbito de auto-conhecimento, que benefício procura retirar dessa transição interior/exterior, da esfera pessoal para o espaço público?

R.R. Reflexivo/introspectivo, ou vice-versa. Reflexivo no sentido do espelhamento desse tal Outro e do Si (self) ou dos outros que existem em mim e que, por vezes me surpreendem. As experiências vivenciais são muito gratificantes mas mais importante é a atenção que lhes prestamos e o que retiramos delas.

Há homens e mulheres que vão cruzando as nossas vidas, de passagem ou de forma mais permanente e que nos marcam com as suas próprias experiências ou com as suas obras, os seus escritos, ou testemunhos, as suas conversas, os seus olhares, confissões, gestos…

Quando exponho, ou coloco uma obra minha em contacto com os fruidores/público, proponho apenas uma coisa que é muito simples mas simultaneamente das mais complicadas de conseguir no séc. XXI: um pouco de predisposição, atenção.

A palavra interacção está tão banalizada que parece não se saber o que significa. Um diálogo é um processo magnífico de interacção. Mas é necessária alguma entrega para existir acção e reacção.

Acredito na possibilidade de “tocar” o Outro. Seja por um momento, numa reflexão, enaltecendo ou fazendo-o relembrar/recordar, activar o que parecia estar escondido, ou esquecido.

Acontece que poucas vezes são aquelas em que sei se o consegui, mas não sei desistir, não quero, não posso, nem sei explicar o motivo.

V. Mais que um público homogéneo, interessa-lhe antes tocar a pessoa individualizada “o outro”. Esse momento de predisposição de que fala poderá então ser um momento de identificação mútua em que o individuo se reconhece no seu trabalho e o seu trabalho ganha significação na leitura que o próprio indivíduo faz dele.

Interessa-lhe provocar dualidade familiaridade/desconforto no fruidor do trabalho?

R.R. Prefiro a terminologia fruidor - participantes activos fisicamente ou não, dependendo daquilo com que se deparam. Os motivos são diversos mas, no que diz respeito a esta conversa, penso que faz sentido enquadrá-la na questão da pluralidade e da diversidade.

Esse Outro é heterogéneo, com características comuns como o facto de serem humanos, mas com as suas singularidades que tornam cada um de nós único e simultaneamente próximo e semelhante.

Na Arte interessa-me quase tudo, excepto o que não o é. Já não é pouco.

V. E o Porto?

R.R. O Porto é a minha terra Natal. Aqui nasci, cresci e aqui vivo e trabalho.

Sou amante do meu idioma, de algumas tradições e orgulhosa das minhas raízes. A minha identidade é esta. Se tivesse nascido e crescido noutro local seria diferente.

Por tudo isto sou, igualmente, bastante crítica relativamente aos portugueses, ao Porto, e a Portugal.

O Porto não poderá nem deverá tentar ser, em meu entender, uma metrópole. Ser uma grande aldeia cosmopolita com cada vez melhores condições de vida, com direito a tudo o que uma cidade tem, fica-lhe bem.

Quanto às Artes ou ao panorama artístico… parece-me que é fundamental viajar e conhecer outras realidades para perceber a nossa.

O Porto não é melhor nem pior que outros locais. É o que é. Tem a gente que tem. Com enormes defeitos como em qualquer outro local e também as suas virtudes.

Os problemas do panorama artístico não estão nas cidades, nos locais… estão sempre nas pessoas. Nós todos somos responsáveis pelo que temos. Uns mais, outros menos. Questões políticas, sociais, de investimento económico e humano na educação, na cultura, na formação e na informação das populações, são paralelas e/ou transversais à produção artística e ao panorama artístico.

Digamos que esta última parte da resposta, não deixando de ser verdadeira, é bastante conveniente.

De qualquer maneira podemos tentar fazer alguma coisa. Eu faço aquilo que posso e que acho que o sei fazer a partir da minha experiência: fui aluna, adolescente, sou professora, artista plástica, mulher, cidadã.

Aprendi com o que recebi de positivo e negativo, o desejável e o indesejável, o que observei, … O que senti, me fez rir ou chorar, …

Como professora aprendi a fornecer as ferramentas que não recebi e que me fizeram falta, a dar continuidade a alguns ensinamentos que não esqueci em todo o meu percurso enquanto estudante por parte de alguns professores e artistas, poucos infelizmente, que guardo dentro de mim.

No mesmo sentido aprendi que é muito importante dar acompanhamento aos alunos e contribuir, caso se interessem por isso, para prepará-los para a vida profissional. Estar do lado deles na ajuda da construção dos seus alicerces para que se sintam mais seguros. Sinto-o como uma obrigação moral e ética.

Tenho assistido aos resultados desse trabalho e sinto-me muito feliz. Alguns ficaram amigos e colegas e outros colegas bem sucedidos.

Comunico-o porque não se trata de colocar os jovens a trabalhar para mim, a serem meus assistentes, mas a orientá-los nos seus projectos pessoais e procurar promovê-los de alguma forma, nem que seja na sua primeira exposição pública.

Considero que não há concorrência na Arte. A Arte é muito superior a isso.

Valorizo as estratégias éticas.

Querer ser “estrela”? Querer ser “artista”? Não entendo. Não perco tempo a procurar responder a essas questões. Os média respondem por mim.

Quanto ao Tempo… quem sabe.

As minhas obras e as exposições ou projectos que realizo com regularidade nos mais diversos espaços, acontecem desde que estes me agradem e consiga conversar, criar uma base simples de entendimento, com as pessoas que me convidam para o fazer. Tenho de me sentir livre para chegar ao acordo. E assim criam-se os diálogos, não é?

 

Excerto de uma conversa/entrevista realizada pela Voca via e-mail durante o mês de Maio de 2008.

 

 

 

> Mª DE FÁTIMA LAMBERT. MAIO/JUNHO 2008

“...poucos existem que ainda saibam...”(Robert Musil)

Rute Rosas - Desde os primórdios foi lugar de culto. O corpo edificou-se logo nas primeiras manifestações colectivas, pautando-se pelo inefável na beleza que se esvaziava nas matérias e nos símbolos que as conformavam — máscaras, estatuetas, fetiches... Nas comunidades arcaicas e tradicionais, de componente holista, comunitária, é o corpo, mas o corpo que abarca e atravessa todos os corpos individuais: é um corpo que contém em si a herança dos mortos e a marca social dos ritos — comunicação corporal tribal. No domínio da comunicação dos signos, como no da sua apreensão e tradução, o que permitia que nos códigos fossem transmitidos e compreendidos era uma determinada função do corpo. O corpo comunitário implica uma vivência do corpo singular como não separado, não isolado das coisas e dos outros corpos. O “corpo próprio” erigido em conceito pela fenomenologia é um produto do Ocidente. Apenas pode ser pensado como tal - isolado -a “quem empresta o seu rosto”; concebível somente nas estruturas sociais de tipo individualista onde os homens se encontram separados uns relativamente aos outros, quanto a seus valores e iniciativas – na sua axiologia e na sua praxis e pragmática. A singularidade do “indivíduo” não é a de um eu com corpo distinto - com os seus órgãos, a sua pele (em devir, eu-pele, seguindo Didier Anzieu), a sua afectividade, os seus pensamentos separados do resto da comunidade - mas sim a de um corpo em comunicação com toda a natureza e toda a cultura e tanto mais singular que se deixa atravessar pelo maior número de forças sociais e naturais. Rute Rosas – FRAGMENTOS DE MIM (2007) – toma a fisicalidade dividida de si mesma, sistematizando unidades individuadas do seu corpo não somente como percepto mas como vestígio directo trazido através de moldes que se quase eternalizam em substâncias volumetrizadas. Algumas asseguram-se de sua parcela divinatória, ganhando propriedade enquanto relíquias breves. Os corpos recuperam a sua completude através da separação de seus elementos constitutivos, aqueles que melhor os explicitam: mamilos, dedos que rasgam paredes; lábios – PROCURANDO CONFORTO NUM BEIJO (2006), umbigos que são metonímias…As fisionomias recorrentes do eu no corpo próprio, visto como espectador, em frente de instantâneos de razão e sensibilidade. Topos sagrados ou profanos, prata e bronze que encontram a matericidade redentora para o milénio — proposta de Calvino ou anjo de José Jimenez. E na plenitude alegórica de formas erectas, dominam as sobreposições, compactos figurais e sinalética dos corpos.

 

“Me levanto em teus espelhos

 me vejo em rostos antigos

 te vejo em meus tantos rostos

 tidos perdidos partidos

 refletido

 irrefletido…”, de Ferreira Gullar, Poema Sujo, Obra Poética, Famalicão, QUASI, 2003,   pag.302

 

Retirado do texto da exposição “...poucos existem que ainda saibam...”, com obras de Catarina Saraiva, Pedro Valdez Cardoso e Rute Rosas. Curadoria de Mª de Fátima Lambert, Quase Galeria, Porto, Junho/Agosto, 2008

 

 

 

> JOÃO BAETA. PORTO. MARÇO 2008

Dois dedos de conversa com aqueles que não sabem e aqueles que acreditam que “não há príncipe azul no elefante cor-de-rosa”

Comecemos por analisar o nome da exposição não há príncipe azul no elefante cor-de-rosa que Rute Rosas nos mostra no Espaço Ilimitado no Porto. Antes de mais nada é estranho, no entanto familiar. Remete-nos para uma história daquelas que se contam para adormecer as crianças. Será toda a frase uma afirmação de impossibilidade e incerteza? Uma imagem retirada de um conto trágico-cómico, com um tom burlesco, como se a realidade se pintasse de cores que representam tristeza e sonho (o azul e o cor-de-rosa). Vejamos a expressão I’m blue, relembremos o sonho americano e o significado que é atribuído ao azul em determinado contexto e imaginário anglo-saxónico. Revisitemos também as imagens do bailado satírico Dança das Horas no filme Fantasia de Walt Disney (1940) com música do mesmo nome de Amilcare Ponchielli, onde um grupo de diferentes animais representam as diferentes horas do dia. Percebemos que é preciso revelar, entender, digerir. Que nada é aquilo que parece. E com o que é que deparamos na exposição? Entramos num cenário: verdadeiro ou falso? Realidade ou ficção? Percebemos que entramos numa casa sem um ser humano. Móveis vazios entreabertos, ramos de rosas secos, rendas e bordados, fios e agulhas, cravos brancos, licores e biscoitos, televisão ligada sem emissão (ruído rosa)... O que aconteceu aqui, neste lar? Talvez castelo abandonado. Alegria, prazer, isolamento e solidão, mal-estar, dor, abandono...? Então, porque apesar de ausente o corpo, a sua presença ainda é mais fortemente sentida? Não está aqui! Como? Não tem Rute Rosas tida como centro fulcral do seu discurso, o próprio corpo? O corpo transcende-se quando não existe. Transforma-se em memória que não pertence à artista mas ao espectador. Percebemos que podemos estar, estar apenas. Rute Rosas sem pretender criar qualquer tipo de convenção ou determinar o modo como deverá o espectador observar, sentir a obra, cria as condições que não inibam ou camuflem memórias sensoriais afectivas, que obviamente serão diferentes de espectador para espectador. É esta questão que reflecte de modo mais evidente diferenças na sua abordagem e discurso. Agora, Rute Rosas não atribui ao espectador ou fruidor um lugar confortável.

 

Texto escrito para a exposição “não há príncipe azul no elefante cor-de-rosa”, Espaço Ilimitado, Porto, Abril/Maio 2008.

 

 

 

> ENRIC TORMO. BARCELONA. MARZO 2008

…Gostava que tu escrevesses, porque conhecesses todo o meu processo, porque eu não devo escrever nesta altura (a tese não o permite, a censura não me permite mostrar textos para já).

 

Al recibir este mail pensé: como siempre Rute me tiene que poner en un aprieto. Me pide que escriba algo con referencia a su proceso de creación artístico. Frente a ese reto y como es lógico mi primera intención fue la de redactar un texto de aquellos que se toman en serio, con muchas palabras seguidas y donde parece que se dicen cosas interesantes. Pero recordé aquel aforismo de Leonardo que dice “hay gente que piensa que detrás de las palabras hay algo”. A esa imagen clara de un señor mirando con lupa una serie de letras en fila india como hormigas,  se me unió el recuerdo de las largas conversaciones mantenidas contigo. Se planteaba la contradicción entre la semántica gráfica y la etérea dinámica del discurso oral. Dos formas muy interesantes de expresión pero que en ningún caso serían para esta ocasión. En consecuencia, he considerado que quizá lo más adecuado sea consignar unas pocas apreciaciones que...

 

Las primeras noticias que me llegaron de tu existencia fueron de manera muy indirecta y como fondo de las inquietudes de un buen amigo común. Me refiero a Antero Ferreira. Nos tenemos que remontar a aquellos momentos en que ambos formabais parte del equipo directivo de la Facultad de Bellas Artes de Porto. También era el tiempo en que se producía tu primera ruptura sentimental. De manera que podemos afirmar que fueron tiempos vividos con suma intensidad. Tanto por la posibilidad de la realización de la utopía universitaria, como por la crisis personal que significa cualquier ruptura emocional.  

 

Esa referencia indirecta y lejana hizo que pudiera confeccionar una imagen aséptica, digamos científica, de tu realidad vivencial. Vislumbraba a alguien con un profundo sentido de su existencia pero con una clara incomprensión de su realidad. Te conformaba como alguien con distintos planos psíquicos no conjugados entre ellos pero con una profunda voluntad e interés en comprender cuales eran los mecanismos internos de funcionamiento. Por un lado aparecía una fuerza, diría pasión, que daba sentido a la vida. Pero esa misma potencia se contradecía con las necesidades afectivas más innatas, las cuales a su vez palpitaban con la actividad social y profesional.

 

Al cabo de un cierto tiempo hubo la oportunidad de encontrarnos alrededor de una mesa de un restaurante acompañados por Antero y Mireia otra catalana que se encontraba en Porto en una estadía y con necesidad de hablar catalán. En esa cena las hipótesis establecidas con anterioridad se fueron confirmando. Rute es todo pasión, es todo fuerza, es arrolladora, pero con un alto autocontrol. Es un torbellino razonado y sujetado por la razón, aunque ésta no comprenda su real efectividad.

 

Desde esa cena hasta el día de hoy ha llovido mucho y hemos tenido ocasión de hablar repetidamente sobre lo humano y lo divino, incluso hemos iniciado la realización de una tesis doctoral claramente artística. Este quizá es el mejor reto que tenemos por el momento entre manos. Es un desafío que puede proponer un sistema alternativo a la creación de conocimiento científico/universitario.

 

Sinceramente creo que hice una buena elección al tenerte como doctoranda. Básicamente porque estoy convencido que tu sistema de autoreconocimiento es simplemente artístico. En ti, la vida y la creación van unidas. La una sin la otra no son concebibles, se retroalimentan y dan valor a la existencia. A ello se le debe añadir el valor de feminidad inherente, que ofrece a todo el conjunto un halo de sensibilidad que si bien puede ir desde lo brutal hasta lo lírico, siempre tiene el reflejo de lo referente.

 

Ello me parece, como mínimo interesante, puesto que a día de hoy entender o hablar de arte es complejo. Lo es porque desde hace unos cuantos siglos que se ha difuminado su valor real. Se partía de aquella concepción social, formativa divulgativa... que se le atribuya y que lo hacía imprescindible en la comprensión y conceptualización del hombre, justificándolo como ser capacitado para la abstracción y el goce espiritual. Desde esa referencia se ha pasado paulatina pero inexorablemente a apreciarlo básicamente por su componente económico, en el mejor de los casos, o simplemente como una actividad destinada a la decoración y embellecimiento del escenario donde se establecen las relaciones humanas. Todo ello sin contar, como es nuestro caso, con esa voluntad de funcionarización habitual entre los responsables de la docencia e investigación artística en la universidad.

 

Por lo tanto encontrar a alguien que hace de su vida un motivo artístico siempre es de agradecer. Se tiene la sensación de estar frente a una verdad. Hay algo de concreto y real que se reconoce con solo verlo. Sobre ese aspecto me gustaría señalar dos aspectos complementarios que me parecen memorables: el primero hace referencia a los medios tecnológicos que utilizas, el segundo constatar como tus realizaciones artísticas son un medio de autoconocimiento.

 

Tecnológicamente utilizas procesos con un marcado sentido antropológico que en ocasiones indican procesos preindustriales, e incluso prehistóricos. Quiero recordar la utilización de recursos textiles, que nos retrotraen indirectamente a mitos antiguos indisociables a la feminidad; o bien el uso de  la técnica de la “cera perdida” para generar formas anatómicas extraídas de tu propia existencia. A esa realidad se le acomoda también el uso de tecnologías punta: fotografía, informática etc. Pero sus contenidos, sus formalizaciones vuelven a ser humanas. Me sorprendió que los planos de la tesis o de los espacios que ahora están en exposición, me llegaran vía mail (informática) pero realizados a mano alzada. Existía obviamente una contradicción sensorial. ¿ o no? Si, en cuanto a adecuación de los medios, no, en cuando a voluntad de comunicación. Ello también lo encontramos en aquella colección de fotografías, digamos de serie negra de hace algunos años y/o en la acción del “Abrázame”.

 

En la misma línea es necesario reconocer la practicidad con que son utilizados esos medios tecnológicos. No existe ninguna voluntad de virtuosismo, no se presenta la necesidad de llevarlos a las últimas posibilidades de sus capacidades de formalización. Por el contrario su utilización es directa, simple, evidente. Porque lo que interesa es mostrarlo como lo que son, simples medios. No son importantes, no son el motivo, solo son el adjetivo de los contenidos. A esa realidad hay que señalar otra característica, todos ellos indican una secuencia. Incluso los tratamientos fotográficos, definidos por su instantaneidad señalan un antes y un después, un transcurso.   

 

El segundo aspecto que señalaba con anterioridad viene a confirmar definitivamente esa veracidad en las propuestas. Estamos de acuerdo que todas las propuestas en el campo del arte son autoreferenciales al autor. Esa es la premisa básica. Pero en tu caso creo que la realidad va un poco más allá. Mientras en los demás se presenta como una expansión personal, como una exposición pública de un interior, en tu caso es algo distinto. Es una automuestra, es una acción reflexiva. Te buscas a ti misma en tu propia obra. Existe un alto grado de introspección, no en las formalizaciones o exposiciones, sino en los actos anteriores y posteriores, y que a veces incluso te sorprendes a ti misma.

 

Es por ello, que los que estamos a tu alrededor solo podemos verte como un continuo desarrollo, como una secuencia de sucesiones de etapas que se sobreponen las unas a las otras y que en momentos puntuales se plasman en un exterior mundano donde se intentan coordinar con un todo general. Se busca una interacción, una comprobación de lo adecuado de la propuesta, digamos una valoración social. Pero a diferencia de lo normalmente establecido, donde se evalúan las realizaciones, en tu caso lo que quieres que se considere son las intenciones.

 

Con ello no propongo que tu actitud sea provocadora, todo lo contrario. Es una búsqueda, que no investigación, de los resortes emocionales que te permiten sobrevivir un día a día adverso por la mediocridad imperante.

 

Bueno no sé si habré sabido responder adecuadamente a tu petición, lo he intentado...

En cualquier caso terminaría diciendo que:

 

gramaticalmente no he sabido expresar mejor lo que es Rute, en ella no hay ni principio ni final, es simplemente un continuar, un seguido, una constante, un mantenimiento, un duradero, incluso me gustaría poderla definir como un sempiterno, pero eso lo dejo para...

 

en consecuencia:

 

... Rute Rosas...

 

Texto escrito para a exposição “não há príncipe azul no elefante cor-de-rosa”, Espaço Ilimitado, Porto, Abril/Maio 2008.

 

 

 

Água de Colónia

> SUZANA VAZ. PORTO. SETEMBRO 2006

In catálogo da exposição Água de Colónia, projecto em parceria com Isaque Pinheiro, Galeria Virgílio, S. Paulo. Brasil. Outubro/Novembro, 2006

 

Água de Colónia (…) organiza-se num complexo comum de referências em torno da dialéctica corpo/mente.

O vídeo Talvez eu seja daqui, realizado por Rute Rosas em 2004, mostra-a de pé no mar da Prainha, Rio de Janeiro. Neste filme de plano único, a imobilidade da sua nudez frontal, hierática, recorta-se contra o fundo dinâmico, incessante, das ondas que chegam à praia; a água que cai sobre a sua cabeça escorre por todo o corpo e reúne-se com o mar que lhe cobre os pés e de onde o seu corpo parece emergir. A coesão plástica e iconográfica do corpo nu no cenário natural, mediados pela preponderância da presença da água, encerra um conjunto de conotações em torno da ideia de regeneração e de potencialidade criativa. (…) Iconograficamente, o mar indica o movimento rítmico e cíclico da água, coincidente com a órbita da lua, por sua vez associada desde a pré-história ao ciclo fértil feminino, num simbolismo de fertilidade que liga a água, a mulher e a lua, e abrange todos os planos da existência, da realidade e da natureza, para o homem e para o universo. Por outro lado, a imersão é equivalente à morte ou ao cataclismo que periodicamente dissolve o mundo no oceano primordial; a imersão desfaz todas as formas do passado, restaura efemeramente a integridade do começo, redimindo, purificando e regenerando, numa reintegração temporária no não-formal que é seguida de um novo nascimento; aquele que emerge chega sem máculas, apto a receber uma nova revelação, uma nova vida. (…)

Subjacente ao simbolismo da água reside, portanto, a ideia de resgate do fabuloso illud tempus da criação. A “água viva”, existente algures no céu, derrama-se com um efeito de cura e de fertilização; vida, força e eternidade estão contidas nesta água que refaz a criação, levando consigo aquilo que deve ser dissolvido, restaurando a integridade primordial e propiciando a nova criação. Em Talvez eu seja daqui, como noutros trabalhos de Rute Rosas, Da Terra ao Céu e Karnapidásana de 2004, a nudez do corpo é auspiciosa e elementar, ontológica: assinala o advento da mudança de modo de ser; expõe o veículo individual pelo qual se chega a um modo de ser não profano. O corpo que emerge representa uma identidade na sua condição mais despojada, recebendo pela “água viva” a fertilização criativa do local, numa regressão ao tempo primordial; retoma e remedia a nostalgia segundo a primeira vanguarda brasileira, tal como ficou enunciada por Oswald de Andrade no poema Erro de Português de 1925:

 

Quando o português chegou

Debaixo duma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português

 

Pode interpretar-se também com esse sentido a peça Baptismo/Viagem/Nostalgia (fig. 1), pensada para Água de Colónia na continuidade de Talvez eu seja daqui. Baptismo/Viagem/Nostalgia é um dispositivo de duche cilíndrico, resguardado por uma cortina: a corrente de água é substituída por uma corrente de luz; o chão está coberto de sal, de onde sobem os sons de uma trilha sonora que mistura sons de água e de guitarra portuguesa, espalhando-os discretamente por todo o recinto da exposição. Baptismo/Viagem/Nostalgia incorpora contudo elementos de outras experiências, designadamente Da Terra ao Céu e Karnapidásana de 2004, iconograficamente presentes no resguardo do duche, que ostenta duas impressões em escala natural de uma imagem de Rute executando uma retroflexão, em dupla consigo mesma. Esta posição insere-se num conjunto de ásanas de Yôga executados para o conjunto Da Terra ao Céu, e recupera esse universo de significados: a passagem de um modo de ser profano para um modo de ser não profano por meio de uma psico-fisio-tecnologia que promove a experiência directa e empírica do complexo corpo/mente. Esta mudança ou passagem de plano de existência – que rompe o tempo e o espaço quotidianos, profanos, e instaura a vivência de uma realidade não quotidiana, não profana – fica ainda sugerida no recorte simétrico da imagem da retroflexão. (…)

A peça Mala do meu corpo… (fig.2) (Do meu umbigo de prata/Do meu beijo de prata/Do meu dedo de prata/Do meu mamilo de prata), apresenta réplicas em prata de partes do seu corpo, processo que a artista desenvolve desde 2003, iniciado com Beijos de Prata. A apresentação de fragmentos do seu corpo é recorrente no discurso auto-referencial, multissensorial e proprioceptivo de Rute, e inclui experiências tais como Fragmentos de Corpo (2003), Porto 2001/Rio de Janeiro 2003 (2004), e Objectos Espelho (2005). Rute refere-se assim a estes fragmentos de si: «São dádivas de mulher: são dedais de costureira, umbigos de mãe, bocas que beijam e alimentam, mamilos que alimentam e se deixam beijar, chupar e lamber pelo recíproco prazer, dedinhos que apertam a camisa do seu amor». A expressão do afecto, preferencialmente associada à vivência do complexo corpo/mente nas acções elementares necessárias à sua subsistência, transforma estes objectos inanimados em algo mais do que representações miméticas de um corpo original; réplicas evocativas dessas acções elementares, estes fragmentos significantes rememoram as acções originais de que são o ícone, garantindo que estas nunca serão meramente automáticas ou insignificantes, mas eventos sempre carregados com a vitalidade da acção original, com a disponibilidade, a espontaneidade, e a potencialidade do modo de ser do momento primordial. Deste modo, os fragmentos do corpo exprimem as acções originais como outros tantos pretextos diários para transcender a esfera do profano, do quotidiano, para efectuar a passagem do modo de ser profano para o modo de ser não profano, ou sagrado. É esta mesma estrutura mítica originária e instrutiva, na qual a repetição de uma acção significante é consagrada com a toda a energia da sua acção original, que preside à realização de Pele de Embrulho, papel de embrulho, e Pele de Embrulho na TV Shop (fig.3), vídeo instalação, de 2005, nos quais Rute homologa o acto de abraçar e o acto de embrulhar com o sentido envolvente e afectuoso de dádiva, oferta ou presente: «Quando se presenteia alguém, abraça-se simbolicamente essa pessoa. O próprio acto de embrulhar/agasalhar o presente é um abraço». Paralelamente à exposição Água de Colónia, Rute desenvolve um projecto de arte pública nas ruas de São Paulo, intitulado Abraça-me (fig.4), disseminando pelas paredes entre o espaço da Bienal e a Galeria Virgílio a imagem deste abraço com a palavra abraça-me em diversos idiomas.   

 

 

 

 

Da afectividade enquanto processo

> MIGUEL VON HAFE PÉREZ. SETEMBRO 2005

In catálogo da exposição Pele de Embrulho, Galeria Sopro, Lisboa, Outubro, 2005

 

O trabalho de Rute Rosas tem vindo a construir-se na intersecção de formas que denotam um forte impulso vitalista e a continuada exploração do corpo enquanto suporte de registos mais ou menos auto-biográficos. Esta dimensão auto-referencial funciona mais como um ponto de partida mediante o qual a artista se relaciona com a sua envolvente, do que propriamente como indagação da sua dimensão social, política ou estética. Ou seja, o regime da representação estabelece mais uma escala de relacionamento directo com o fruidor, do que esclarece sobre qualquer tipo de narratividade biográfica. Assim, o que se tem evidenciado nos últimos projectos desta artista é uma preocupação no processo em que estes se desenvolvem, em detrimento da convencional estrutura de apresentação/recepção das propostas.

(…) O trânsito constante entre a dimensão afectiva (o abraço) e funcional (o papel para embrulhar) situa a intervenção da artista, como se disse, num plano que tenta curto-circuitar o modo como convencionalmente separamos as esferas do amor e do trabalho, do prazer e da produtividade. (…)

Este optimismo e o anteriormente referido ímpeto vitalista que os projectos de Rute Rosas denotam contrastam violentamente com o pessimismo e o estado de ansiedade constante a que as sociedades contemporâneas parecem estar condenadas; no entanto, tecendo a sua estratégia criativa a partir de uma visão que não deixa de ser irónica e por vezes conflituante com questões críticas da realidade que a envolve – como sejam os papéis atribuídos à mulher no quadro das relações privadas e públicas na sociedade actual, ou os modos de visibilidade/distribuição do trabalho artístico num contexto fortemente determinado pelo poder económico que o sustenta –, a artista parece indicar o espaço da afectividade como espaço vital de nivelamento das contradições que marcam o ritmo das nossas acções. Assim, é a partir dos pequenos gestos e nos pequenos prazeres, que se vão erigindo alternativas positivas àquilo que nos parece inevitável e fatalmente determinado. E é acolhendo e confrontando-nos com todo o tipo de situações (…) que melhor nos preparamos para saber valorizar a simplicidade e a energia dos momentos de felicidade de que tão irracionalmente nos afastamos quotidianamente.

 

 

 

Entre o corpo e a paisagem

> FERNANDO COCCHIARALE. RIO DE JANEIRO. ABRIL 2004

in www.anamnese.pt

 

O sentido poético da arte de Rute Rosas transita dissonante entre dois gêneros muito caros à história da pintura ocidental: o corpo (retrato) e a cena a ele destinada (paisagem). No entanto a escolha de Rute por estes temas ancestrais da arte não é movida por qualquer nostalgia ou por esforços de reabilitação. Ao contrário, sua obra parece investigar que conjugações do corpo e da paisagem seriam possíveis na arte e no mundo contemporâneos. 

 

Daí talvez resulte uma primeira e esclarecedora opção da artista. O uso de meios de expressão e de suportes não convencionais sublinham o distanciamento crítico de Rosas em relação às representações pictóricas do corpo e de cenas naturais criadas pela arte clássica. Em todos os trabalhos dos últimos anos sua presença direta, no caso das performances, ou icônica, nos vídeos e fotografias que as registram, é vital para a fruição e para a leitura (tanto sintática quanto semântica) das obras desta artista.

 

Entretanto sua presença explícita nos trabalhos não se inscreve na tradição do auto-retrato.(…)

 

Frequentemente desnuda ou coberta por uma malha colada ao corpo, Rosas parece, em alguns dos seus trabalhos, um quase desenho (uma auto--silhueta) ou uma escultura de si mesma. A ênfase aqui é sempre dada à totalidade de seu corpo e não a este ou aquele detalhe específico. Ás vezes cobre-se das pernas ao alto da cabeça, deixando apenas as feições aparentes. Em outras ocasiões, mascara-se, numa evidente minimização do papel de seu rosto nos trabalhos.

 

Por outro lado, a figura da artista nas obras tampouco tem por função fundamentar ações reais, vividas, sem simulações, não teatralizadas e nunca representadas, tal como professavam a body art e a arte conceitual nos anos 70. Contrárias a esse desprezo pela ilusão, herdado do modernismo, mas ainda ativo nos primórdios da arte contemporânea, as obras de nossos dias retomaram a narrativa, o conteúdo e o ilusionismo, embora em bases muito diversas daquelas do passado pré-moderno.

 

Com o mesmo espírito, se examinarmos a outra ponta que delimita o âmbito da investigação e invenção poéticas de Rute, as paisagens, veremos que razões bastante semelhantes às que separam seus trabalhos da lógica do auto-retrato, da body-art e do conceitualismo, distanciam-na, simultaneamente, da paisagem clássica e pré-moderna e, também, daquela proposta pela land-art. Estes pólos (corpo e paisagem) que emprestam sentido à produção de Rute Rosas equacionam-se de modo emblemático em sua performance Dou Festas Porque Quero Festas, realizada no Porto em 2002, na casa do galerista José Mário Brandão, na mesma noite da inauguração da mostra Dentro de Mim, desta artista, na Galeria Canvas. (…)

 

A degustação torna-se, ainda que provisoriamente, antropofágica. Ao final de tudo, entre os farelos que restaram espalhados sobre a mesa, pode-se observar que a imagem projetada permaneceu intacta e que com o bolo foi-se embora, não o trabalho, mas o espaço em que existiu um primeiro momento.

 

Entre o corpo real de Rute Rosas e sua inscrição no trabalho, feita pela malha transformadora, entre sua imagem projetada e a fragmentação do fundo (bolo) no qual se inscrevia, entre o registro da festa e das festas, e sua posterior visão em DVD, existem tantas mediações que não mais podemos pensar o sentido dessa obra na simples polarização entre realidade e representação.

 

Dou Festas Porque Quero Festas, transmite-nos a idéia de uma troca igualitária, de um fluxo cambiante entre artista e público, mas também entre sua pessoa e as outras (dar e receber afagos é algo de ordem inteiramente pessoal), entre, enfim, corpo e paisagem. Rompe-se aqui com a velha exigência de separação entre sujeito e objeto (funcionalmente diferentes), fundamental para as ciências e as artes do passado. Dou Festas Porque Quero Festas não mais concebe a alteridade como uma polarização entre identidades permanentes, fixas, mas enquanto um processo transitivo de papéis e de funções em rede.

 

 

 

MAMÃ, DEIXA-ME ANDAR DE ESCULTURA?!.

> RUTE ROSAS. PORTO. 2000

In catálogo da exposição Mamã, deixa-me andar de escultura?! Galeria Serpente. Porto. Setembro/Outubro. 2000

 

Era uma vez uma menina muito pequenina que brincava no barracão que a avó tinha atrás de sua casa. Passava grande parte do seu tempo, depois das aulas durante a manhã, a inventar histórias, personagens, ambientes, com a ajuda das bonecas e de outros brinquedos, bem como dos bichinhos que viviam entre os jarros, roseiras e brincos de princesa, no pequeno jardim que separava os dois espaços.

 

A avó Linda, como todos na família lhe chamavam, era uma mulher forte, resistente ao sofrimento e dedicada à sua primeira neta. Uma dona-de-casa perfeita. Lembro-me que à 2a e 6a feiras de todas as semanas se passava o dia na limpeza, depois do esquema ser meticulosamente definido. Quando eu chegava da escola, que era mesmo ali ao lado, a Tucha esperava-me à porta que já estava aberta, pois pelo seu miar a avó Linda sabia que eu estava muito perto. O almoço sempre pronto e o lugar na mesa da cozinha aguardavam a minha chegada, assim como aquele beijo. Durante a refeição o meu avô lamentava-se dos negócios aos ouvidos atentos da avó Linda, sempre dedicada e interveniente procurando amenizar a situação. Depois ele saía apressado, enquanto a avó lhe escovava o casaco no percurso até à porta. E ficávamos nós as duas com a Tucha. Era a minha vez de contar o que se tinha passado na escola, da avó relatar a sua manhã, com o fundo sonoro dos Parodiantes de Lisboa, que, por vezes, nos faziam soltar gargalhadas. Então eu fazia, rapidamente, os trabalhos de casa para poder brincar até à hora do lanche.

Hum! Os sabores das melhores guloseimas eram preparados dependendo da época do ano e do meu pedido. O leite-creme, a aletria, a torta de laranja com geleia, o doce de abóbora, que comíamos com bolachinhas, a manteiga que fazíamos com a nata do leite e saboreávamos com pão torrado...

 

As roupinhas das bonecas também eram, inicialmente, feitas por ti, com o tecido que sobrava dos meus vestidos. Na velhinha máquina de costura preta e dourada, sentada ao teu colo, ajudavas-me naquele ritmo de vaivém da pedaleira, que me parecia na época inatingível. Quando a noite se aproximava e chegava a hora de voltar para casa, era um drama. Queria ficar contigo, mas também queria os meus pais, que muitas vezes acabavam por me deixar ficar, particularmente à 6a feira, pois o avô chegava sempre muito tarde, e não havia escola no dia seguinte.

Nas noites de Inverno, davas-me banho e perguntavas-me se no dia em que eu fosse grande e tu pequenina eu te daria banho e trataria de ti. Eu respondia que sim, mas confesso que a ideia me fazia bastante confusão.

Meu Deus, nunca pensei que algum dia isso viesse a acontecer.

Fazíamos tricote e víamos televisão, depois íamos para a minha cama onde partilhávamos a botija eléctrica, coberta com um número infinito de tubos de lã para não queimarem os lençóis nem a nossa pele. Fazíamos cadeirinha e eu adormecia dentro de ti enquanto contavas histórias do tempo em que as plantas e os animais falavam. Foi uma vida dura mas tu tinhas o cuidado de a adoçar com o tom de voz que utilizavas.

Todos os meses, mais ou menos na mesma altura, íamos à Praça da Liberdade pagar o aluguer da tua casa e passávamos por aquela escola e eu dizia que quando fosse grande queria ir para lá. Eu sei que a ideia não te agradava muito, mas mais tarde entendeste que era aquilo mesmo que eu queria.

Sempre que saíamos seguravas-me a mão com tanta força, que se fechar os olhos ainda consigo sentir a pressão e o calor. Não era por medo de uma fuga, o que não deixava de ser uma possibilidade («leva-me, que eu quero ser livre!» era a expressão que eu usava sempre que ao ver o cão na rua, saltava para o seu lombo), mas porque te sentias responsável pelo teu tesouro e tinhas medo de o perder. Foi muito difícil quando eu fui para o jardim--escola, ficamos doentes, embora fosse importante para mim estar com outros meninos.

 

 

Passámos muitas férias juntas. Gostava de estar contigo. Eras a avó mais linda, que me ouvia e ajudava nos trabalhos de casa, nas brincadeiras, que me dava beijinhos doces e palmadinhas quando eu me portava mal. Que me ajudava a preparar os “espectáculos” que eu fazia para os meus pais quando chegavam de trabalhar, e nos quais eu cantava, dançava e contava histórias, até ficar com sono. Davam imenso trabalho. Desde as constantes mudanças de cenários, figurinos e maquilhagem, até à sincronização musical.

Durante longos anos, levavas-me ao ballet, no 6, e esperavas por mim sentada na sala invadida de um aroma a resina de pinheiro. No fim da aula vestias-me e voltávamos para casa, no 6, com os cheiros nauseabundos, os apertos e encontrões, e, na melhor das hipóteses quando havia um lugar livre eu sentava-me no teu colo e seguíamos viagem de mão dada.

Tenho orgulho de te ter tido como avó, até porque foste mais do que isso sem nunca teres substituído ninguém, tinhas e tens, no meu coração, o teu espaço.

As histórias têm sempre um fim, mesmo aquelas que pensamos que nunca vão acabar.

Tenho saudades tuas!